sábado, 17 de abril de 2010

Uma tarde feliz igual a tantas outras

Minha mãe costurava na sala. Duas freguesas chegaram, mãe e filha, a filha fora experimentar o vestido. Naquele tempo, minha mãe ainda costurava para fora, e ajudava na despesa da casa.
Eu e meu irmão nos arrastávamos no chão de tacos a jogar botões.
No rádio, Dalva de Oliveira cantava Kalu.
A tarde já ia pelo fim, e logo chegaria a noite.
O Programa Julio Louzada contaria mais uma história dramática, e daria conselhos a alguma ouvinte apaixonada, que para lá escrevera por conta de desditas amorosas.
Depois era a hora e a vez da Oração da Ave-Maria, pelo mesmo Julio Louzada, com sua voz solene, que repercutia por toda a vila onde eu morava, com suas palavras pausadas - Ave-Maria cheia de graça...
Como fundo musical, Ave-Maria de Gounod, dava o tom solene à oração. E todos calados, as crianças já haviam feito o sinal da cruz, os adultos mais do que isso, repetiam baixinho só para si, cada palavra da oração.
- Bendita sois vós entre as mulheres...
Nenhum outro som se ouvia em toda a rua, senão a récita da Ave-Maria, na voz coloquial de Julio Louzada.

A noite logo iria cair, e às 7 horas, de banho tomado, eu me sentaria à mesa para jantar. Antes disso, calado, em torno do rádio, eu aguardava o sinal de minha mãe de que o prato já estava na mesa, enquanto acompanhava as aventuras de Jerônimo, o herói do sertão, que me chamava a dar tratos à imaginação, e segui-lo pelos arredores de Cerro Bravo, a perseguir o Caveira e o Chumbinho, seus eternos inimigos.
- Chumbinho, apresente o seu relatório.
A cavernosa voz do Caveira cobrava do seu capanga a notícia que ele tanto gostaria de ouvir, a da morte de Jerônimo.
Mas, Chumbinho, contrariando as expectativas, afirmava : "Jerônimo escapou novamente".
- Maldição! - era o Caveira desconsolado com mais um fracasso.
Ao pé do rádio, eu vibrava, nos meus 9 anos, ingênuos e sonhadores, com mais aquela façanha do herói Jerônimo, que voltaria são e salvo para os braços de sua noiva Aninha, galopando ao lado do seu fiel companheiro, o Moleque Saci.
- O prato já está na mesa!
Era a voz da minha mãe convocando marido e filhos para o ritual da janta.
Daí a pouco, o rádio seria desligado, aos primeiros acordes de O Guarani, anunciando mais um programa da Voz do Brasil.
Eu nunca entendera, na minha ingenuidade, para que servia um programa chato e sem heróis, que levava toda a vizinhança a seguir os mesmos gestos do meu pai, encaminhar-se até o rádio, girar o botão e desligá-lo.
Muitos anos mais tarde é que eu pude entender, graças à Rede Globo, que existe uma regra global que afirma que uma mentira repetida por sucessivas vezes pode tornar-se uma verdade reconhecida pela massa globalizada.
O Jornal Nacional e as novelas são os exemplos vivos dessa regra, que poucos se dão conta de estarem seguindo-a no seu dia-a-dia.
A nossa noite radiofônica iria prosseguir, às 8 horas, com o Direito de Nascer, uma lacrimosa novela que tinha o choro da mamãe Dolores e um enredo dramático sem precedentes na minha vida infantil.
Entristecido pelos sofrimentos da pobre mamãe Dolores, eu aguardava ansioso o programa humorístico que viria, pouco depois, e iria resgatar a minha alegria.
O meu preferido era o Balança mas não cai, todas as sextas-feiras, na mesma Rádio Nacional, que acabara de tocar os últimos acordes do encerramento de mais um capítulo da novela.
O humor do Balança mas não cai compensava os dramas e as desgraças do Direito de Nascer. Era a eterna balança, colocando, num dos pratos, o lado triste da vida e no outro, um humor cheio de irreverências.

E assim eu ficava embevecido com as graças do Brandão Filho e do Paulo Gracindo, no quadro do Primo Pobre e Primo Rico, enquanto aguardava o Peladinho, um torcedor rubro-negro que sofria com o resultado do Flamengo no último final de semana.

Chegava a hora do sono, o rádio era desligado e a casa silenciava.
Mais um dia chegava ao fim, mas só depois do rádio ser desligado.
Era assim que se vivia na Era do Rádio, sem estresses, sem depressões e sem vacinas para as nossas gripes ou para as nossas benditas doenças imunizadoras.
E pensar que a gente sonhava com um futuro sem doenças e sem crises. Mas, tudo não passava de fantasias na cabeça de uma criança. Uma criança sonhadora que viveu a sua infância Na Era do Rádio.

sábado, 3 de abril de 2010

Semana Santa !!!

Meus ecumênicos leitores, eis-nos à véspera de uma nova Páscoa, não aquela Páscoa dos tempos idos da Era do Rádio, mas uma Páscoa moderninha, como tudo que se faz hoje em dia, cheia de apelos comerciais e quase nenhuma tradição religiosa.
Lembro-me, ainda garoto, ao lado do meu pai, numa sexta-feira santa, tentando sintonizar as estações de rádio, em busca de meus programas musicais.
Mas, qual o quê ! Nada de programações profanas, só se ouviam músicas clássicas, no bom estilo Bach, o que, para o meu gosto na época, eram músicas fúnebres, tristes e depressivas. Ou seriam deprimentes ?
Tocava no rádio a Valsa das Flores de Tchaikovsky, com seus acordes melodiosos e nostálgicos, que me deixaram tristonho, com vontade de chorar. Creio que a intenção era esta mesmo, a de nos obrigar a lamentar, com lágrimas nos olhos e um aperto no peito, a morte do Cristo Jesus. Isso, sem dúvida, favoreceria a introspecção e a reflexão sobre os acontecimentos pascais.
Os adultos cultuavam esses rituais de Páscoa, que começavam com uma atitude de introspecção na sexta-feira da Paixão, tinham o seu momento de preparação no sábado de Aleluia e culminavam com os festejos do domingo de Páscoa.
Confesso-lhes, meus fiéis leitores, que as crianças sofriam muito mais do que os adultos. Pode parecer um exagero, uma heresia descabida, mas elas padeciam quase tanto quanto o Cristo na cruz.
Esta sensação era a expressão mais próxima do que ia na alma da garotada do meu tempo, que era forçada à abstinência dos prazeres diários, sentindo, na própria carne, o sofrimento por que passou o Cristo.
E quando falo da tal abstinência, por favor, me entendam, não me refiro à carne ausente do prato ou do leito, mas à falta da bola de pelada na rua quicando na calçada e da molecada gritando goooollll.
Quando chegava o sábado, não havia como conter o ímpeto punitivo de malhar o Judas. Descarregava-se sobre um boneco de pano, recheado de jornal, toda a ira guardada de véspera, menos pela traição a Jesus, e mais, muito mais, por ter sido o responsável pela nossa frustração reprimida.
Malhado o Judas, a bola voltava a rolar nas ruas, e toda a tristeza ficava para trás. Os rádios voltavam a tocar os sucessos da moda, o sol voltava a brilhar com o mesmo brilho de anteontem e o motivo de tanta tristeza ficava esquecido até o ano que vem.
Chocolate, muito pouco. Presentes, nenhum.
Naquele tempo, presentes, só nos aniversários e no Natal.
Baile de carnaval, no sábado de Aleluia, Deus nos livre e guarde !
Modinhas, chorinhos e as marchinhas, essas, sim, voltavam a ocupar seus espaços nas programações das estações de rádio.
Os aparelhos de rádio, que tinham ficado calados, ou sussurrando, desde a quinta-feira santa, voltavam a alegrar nossas vidas, com a chegada do sábado de Aleluia.
Naquela época, não se falava tanto de Jesus, e as estações de rádio tinham seus programas religiosos, mas eram poucos, comparados a hoje em dia.
A fé religiosa era um produto de consumo privado, quase solitário. Calava-se, na hora da Ave-Maria e rezava-se o terço, durante as missas. Mas, percebia-se mais sentimento nas crenças e maior consciência no ato de praticar a religiosidade.
Hoje, fala-se muito, e se faz muito pouco, ou quase nada.
Comemora-se a Paixão de Cristo, passeando-se e fazendo turismo, longe de casa.
Os rádios tocam, aos berros, os sucessos do momento , recheados de estupidez e pornografia. E tudo numa boa !
Depois da pregação do Padre Marcelo, lembrando o verdadeiro sentido da Páscoa, num simbolismo da passagem da Matéria para o Espírito, relembrando a libertação do povo judeu, em sua fuga do Egito, tudo volta a ser como era antes.
Quem se importa com essas explicações ? Elas são técnicas demais para a fé moderna, que se satisfaz com o culto de meio de semana, missas aos domingos e os programas radiofônicos e televisivos dos padres e pastores.
Os shoppings ficam cheios de pais desesperados para encontrar os brinquedos cobrados pelos filhos. As lojas são decoradas com ovos de Páscoa, seduzindo a gula dos que ainda insistem com o falso jejum de não comer carne.
Pensando bem, meus nostálgicos leitores, na Era do Rádio curtíamos a nossa tristeza na semana santa, mas éramos muito mais felizes no resto do ano.
E creio mesmo que tínhamos mais fé e éramos mais respeitosos com a celebração da morte de Jesus.
Naquela época, na minha mente infantil, eu achava que não era certo ouvir rádio alto, se uma pessoa amada houvesse morrido. Eu não jogava o pão fora, sem antes beijá-lo, numa atitude de respeito com um objeto sagrado. Podia ser ingenuidade demais, mas havia pureza, o que tornava nossos atos mais dignos.
E a música, sempre a música, como pano de fundo de todos os nossos momentos.
"Jamais te esquecerei, por toda a minha vida, és tudo que eu sonhei, oh, minha querida..." Era o rádio do vizinho, sintonizado no programa de domingo, num domingo de Páscoa, na Era do Rádio.